Tenha paciência. Esse é um post sobre corrida. Mas antes preciso contar algumas passagens da minha vida.
Houve um tempo em que ele me levava para a Estação Costeira da Embratel que fica próximo ao Encontro das Águas. Eu era uma criança e aqueles dias eram dias de alegria e deslumbramento. Entrar naquela estação era, para uma criança, como entrar numa nave espacial – era assim que eu me sentia, um astronauta na sua nave – tantos botões, luzes de todas as cores e conversas por rádio com comandantes de navios. Para ele era trabalho. Para mim, pura diversão. Olhávamos os passarinhos, ele me ensinava as funções de cada um daqueles botões e luzes e até comer a comida da marmita que levávamos era diversão.
Houve um tempo que eu era um adolescente e ele se tornou o meu melhor amigo. Ia de ônibus para casa da minha namorada no Conjunto Tiradentes e depois, pra não voltar tão tarde de ônibus, ia caminhando dormir na casa dele no Conjunto Petrus. Conversamos sobre coisas da vida. Lembro das vezes que ele me perguntava sobre meus planos profissionais e eu, ainda um pouco confuso, sabia que queria o Direito, mas não tinha certeza dos rumos que seguiria. Ainda bem. Adolescentes não devem mesmo ter certezas. Precisam experimentar a dúvida.
Passei no vestibular, e foi o tempo que ele me levou para uma viagem por Belo Horizonte, Curitiba, São Paulo, Piracicaba e Salvador.
Quando me formei na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas foi o tempo que ele mais uma vez esteve ao meu lado no lugar aonde deveria estar o meu falecido pai. Foi ele que entregou meu diploma e colocou no meu dedo o anel de formatura que tirei do dedo do meu pai no seu leito de morte.
Houve tempo que estivemos distantes. Mas não houve tempo que ele não me observasse, não acompanhasse as minhas conquistas, não lesse meus artigos, não comesse um peixe comigo quando passava por Manaus.
Aos 55 anos, num tempo em que estávamos distantes, ele parou de fumar e começou a correr. Acompanhei de longe, sem muito interesse. Mas de repente, eu também resolvi promover uma mudança na minha vida. E a corrida também fazia parte dela.
Ele lá. De longe. Observando meus primeiros passos na corrida e vez por outra dando palavras de incentivo. Eu começava como um corredor de 10km e ele já era um maratonista experiente.
Em julho de 2013 resolvi correr a minha primeira maratona. Ele me estimulou, orientou e foi um dos primeiros a me parabenizar por ter completado os 42km.
Chegou o momento de corrermos juntos. A Meia Maratona do Internacional do Rio foi a prova escolhida para esse encontro.
Tive um dia bem cansativo na véspera da prova. Isso me deixou um pouco receoso. Acordamos cedinho. Ele vestia uma roupa engraçada para a corrida, todo combinando peças amarelas e vermelhas, do tênis até a viseira.Tomamos café numa padaria em Copacabana e fomos para a prova.
Ao chegarmos no local da largada, uma chuva torrencial, mas era um momento de muita alegria. Dividiria com ele 21km e cada passou seria o resgate da amizade, do companheirismo e do carinho que sempre marcaram a nossa trajetória. Encontramos amigos de Manaus. Encontrar amigos numa corrida é sempre uma grande e pura confraternização.
Antes da largada preparei o GPS do meu relógio para controlar o ritmo. Meu objetivo era correr os 21km em menos de 2h, já que a primeira meia-maratona que corri em Manaus completei em 2h e 14min.
Foi dada a largada e simplesmente o meu relógio pelo qual eu controlaria o meu ritmo estava com a memória cheia. Sobrava o aplicativo do celular guardado na pochete, mas eu não pegaria durante a corrida. Seria um vôo cego.
Resolvi tentar acompanhar o ritmo dele. Não era muito fácil. Enquanto, eu, com os meus 40 anos, pretendia apenas baixar de 2h, ele, com os seus 60, tinha como objetivo correr em 1h e 39min. Mas o clima ajudava e eu me sentia bem. Então iniciamos num ritmo muito forte para mim e enfrentando logo uma longa subida no início da prova.
Ceguei a ficar um pouco a sua frente. Mas ele logo me passou e eu, enquanto pude, fui acompanhando-o um pouco mais atrás. Não era fácil perdê-lo de vista. Não havia outro corredor com uma roupa combinando da viseira ao tênis em vermelho e amarelo.
A energia e a disposição dele serviam de exemplo, fazia-me mais forte e, surpreendentemente, mais rápido. Lembrava da minha amizade com aquele cara mais velho que eu e que mesmo não tento laços de sangue (ele é casado com a minha tia, irmã do meu pai) sempre esteve presente na minha vida ocupando um pouquinho o lugar do meu pai que Deus tão cedo levou pra perto de si.
Eram passos de uma corrida que contavam como dias da vida. Como na vida, ele ao meu lado, ou um pouco mais frente, mas ainda na minha vista, ou já fora da minha vista, o mais importante é que eu sabia que ele estava lá e que corríamos juntos. Amizades verdadeiras sobrevivem na ausência.
Havia uma parte psicologicamente dura no final da corrida – agravada por estar seu o meu GPS e, portanto, não ter muita clareza de quanto ainda faltava por correr – ao entrar no aterro do Flamengo havia um retorno para os últimos 2,5km até a linha de chegada. O problema é que você via os outros corredores já voltando, mas não via o retorno e correndo parecia que nunca chegaria a ele. Resolvi poupar um pouco para um sprint na reta final.
Com a força da felicidade daquela corrida com o meu velho amigo, entrei na reta de chegada sabendo que ele já completara a prova, mas que torcia por mim. Assim mesmo, como na vida, quando ele, mesmo fora da minha vista, observa meus passos com carinho e afeto de pai e de irmão.
Fiz meu sprint final e cruzei a linha de chegada. No aplicativo do celular, surpreendentes 1h e 49min. Um tempo muito melhor do que me julgava capaz de fazer.
Obrigado, tio Gilbeto. Temos um encontro marcado no dia 26.01.2014 nas Ilhas Canarias. O desafio pra mim será correr pela primeira vez os 42km em menos de 4h. Estaremos juntos.