Você já correu 5 km? Já correu 10 km? Uma meia-maratona (21km) ou uma maratona 42(km)? O que acha de nadar 3.8km no mar, pedalar 180km com um forte vento contra e depois ainda correr 42km num sol escaldante? Impossível?
Se me fizessem essa última pergunta há 3 anos eu diria que para mim era absolutamente impossível!
Ai fui conhecendo a corrida, depois o triathlon e me apaixonando por essa nova forma de viver. No começo eram só corridas de 5 e 10km. Elas foram tornando-se pouco para o meu corpo. Já queria uma meia maratona (21km). Uma maratona (42km).
Veio o triathlon. Um Sprint (750m de natação, 20km de pedal e 5 km de corrida). Um Olímpico (1.500m, 40km e 10Km). E desejei um Iron Man 70.3 (1.900m, 90km e 21km).
Quando fiz o primeiro 70.3 em Miami, disse que não desejava um Iron inteiro (3.800, 180km e 42km). Não era sadio, maltratava demais o corpo. Mas como explicar isso para uma mente inquieta, movida a desafios e disposta a enfrentar os seus limites. Não resisti.
Desde o momento que decidi fazer um Iron Man completo sabia o quanto seria difícil compatibilizar a rotina da vida com a rotina de treinos. Para provas de longa distância é essencial disciplina para treinos longos. Isso exigiria renúncias, a madrugada, inclusive dos sábados e domingos, passaria a ser minha parceira de treinos.
Tão ou mais difícil que a prova é a carga de treinos. Na prova você descansa nos dias anteriores e está focado apenas nisso. No treino, se você percorre distâncias um pouco menores que as da prova, o acumulo de 6 dias na semana com apenas as segundas de descanso, combinado com a rotina profissional, política e familiar do dia-dia, é bastante desgastante.
Dois momentos foram cruciais na minha preparação.
Um sábado, tendo que pedalar 4 horas e depois correr 30 minutos, descansei pouco na véspera e ao final do pedal não tive forças para a corrida. Aquilo me abalou. Tive dúvidas se seria capaz de enfrentar uma prova tão dura. Restavam dois caminhos: desistir ou persistir.
Nessas horas lembramos de todas as barreiras que a vida nos impõe, de tantas vezes em que era mais fácil ou mais cômodo desistir, tantas vezes em que a vida parece te provocar para desistir. Era como se ouvisse aquele grito do filme Tropa de Elite: “Pede pra sair”! Mas, não!
Eu não aprendi a desistir. A vida não me ensinou a desistir. A minha mente resgatou com força os momentos de superação na vida. Perdi meu pai com 12 anos e não aprendi a desistir. Perdi a minha filha com apenas 3 meses de vida e a não aprendi a desistir. E é essa força que me move na vida e no esporte a andar sempre pra frente.
Esfriei a cabeça. Treinei um pouco mais leve no domingo. Descansei na segunda. Cumpri minha planilha de treinos e segunda a sexta, dormi cedo na sexta e fiz um pedal de 5 horas no sábado seguinte. Abri mão da corrida depois. Eu estava pronto. Meu corpo e a minha alma estavam fortes e prontos para o desafio. Era só esperar a hora.
Conversando durante um treino de pedal com amigos que também fariam a prova, refletimos que ela precisaria simbolizar, além do desafio pessoal e físico, uma causa.
Motivados pela luta do filho de um do que estariam na prova conosco e pelo belo trabalho do Instituto Alguém, decidimos que iríamos raspar a cabeça para que o nosso Iron Man fizesse as pessoas refletirem sobre a luta das crianças contra o câncer.
Na véspera de viajar fomos todos raspar a cabeça. Quase todos. Eu fora demovido da ideia de raspar porque teria a gravação um programa partidário e um evento político partidário logo após a prova. Fora eu que cortei o cabelo bem baixo, mas não raspei, todos rasparam a cabeça com a máquina zero. Tínhamos uma causa o que dava um sentimento especial para aquele desafio.
A ansiedade desde arrumar a mala para não esquecer nada. Para não correr riscos decidi fazer a arrumação por modalidade. Natação: touca, óculos, tapa ouvido, bermuda; Ciclismo: sapatilha, capacete, camisa, óculos, garrafas para água e a bicicleta, é claro; Corrida: tênis, meia, camisa, viseira. Comidas e suplementos são necessários, mas deixei para comprar já em Fortaleza.
A viagem para um Iron Man tem um clima especial. Um pouco de alegria, uma pouco de medo, um pouco de receio, um muito de expectativa e muito de sonhos e um quê de renovar esperanças e forças para seguir no esporte e na vida.
Já viajei para corridas e nas viagens para corridas, salvo se você viajar com um grupo grande que chame a atenção, são passageiros como quaisquer outros. No triathlon não. A chegada ao aeroporto com os imensos malabikes (malas em que são levadas as bicicletas) mostra que há algo diferente ali, que há gente diferente ali.
Cheguei em Fortaleza. Era uma manhã de muito calor. Haveria um reconhecimento da natação. Estava um pouco cansado e na dúvida se deveria ir, já que nunca tinha tido a experiência de nadar em mar aberto. Fui. Cai na água e, sem ter muita noção da distância, decidi nadar até a primeira boia. Uma grande roubada. Foram 1500m de natação num mar agitado, quando já deveria estar cuidando de descansar.
No dia seguinte, antevéspera da prova, a saída para um treino de ciclismo. E esse foi o segundo momento crucial da minha preparação. Quando subi na bicicleta voltou o sentimento de medo que achei ter abandonado naquele último treino longo em Manaus. O vento seria uma barreira muito dura, muito mesmo. Nunca havia pedalado com tanto vento e calor. Pedalei 5km e imaginei o que seria pedalar 180km sob aquelas condições, nos meus planos 6 horas e meia, com aquele vento e no calor do final da manhã e início da tarde. O desespero e o medo só aumentaram.
Voltei do treino de ciclismo tomado pelo receio, cheio de dúvidas se seria capaz de vencer aquele desafio tão duro. A sensação de que poderia fracassar era desesperadora.
Foi então que pensei na decisão dos meus amigos que rasparam a cabeça para que aquela prova fosse mais que um desafio pessoal, fosse também por uma causa, uma bela causa, a causa das crianças com câncer, crianças que todos os dias superam um desafio muito maior do que aquele que nos esperava.
Decidi raspar a cabeça. Por sorte havia um salão no próprio hotel. Desci e raspei o cabelo enquanto conversa com um noivo que, na cadeira ao lado, se preparava para o seu casamento. É difícil explicar para quem nunca experimentou uma prova de longa distância o porquê desse desejo de desafiar os limites do corpo e da alma. A plenitude do que sentimos na preparação, durante a prova e na linha de chegada não se traduz plenamente em palavras, ainda que eu sempre me esforce em dividir minhas experiências e sentimentos.
Dormir bem é sempre um desafio na véspera da prova. A ansiedade toma conta e dificulta o sono. Agora entendo porque certa vez fui orientado a dormir cedo na antevéspera das provas. Assim, ainda que a véspera seja uma noite de pouco sono, seu corpo estará descansado.
E foi como previsto. Noite de muita ansiedade e de pouco sono. Apesar de ter me recolhido as 21h, dormi por volta da meia-noite e as 4 da manhã já estava de pé.
Hora de levantar, preparar as coisas com muito cuidado para não esquecer nada. Equipamentos, comidas, suplementos. Óculos de natação, touca, capacete, sapatilha, tênis, camisas, viseira, óculos escuro, batata, nutela, capsula de sal, gel de carboidrato, protetor solar.
Nos momentos que antecedem a largada a ansiedade é substituída pelo clima de confraternização. Amigos de Manaus juntos para esse desafio, gente de todo o Brasil e de várias partes do mundo na praia para a largada e centenas de pessoas assistindo.
Foi dada a largada. 3.800 metros de natação. Tempo nublado, mar agitado. A primeira boia 800 metros mar a dentro. Estava me sentido bem, tranquilo e ciente da necessidade de economizar, ainda faltavam 3000 metros, mais o ciclismo e a corrida. Nessa etapa os atletas ainda estão muito juntos e você não se sente só. A segunda boia 1000 metros para a esquerda. Começou uma forte chuva, o mar ficou mais agitado e bem difícil de enxergar a boia. Há um sentimento de solidão e assusta a ideia de algum problema naquela etapa da prova. Contornada a segunda boia uma etapa mais difícil. Uma boia a uns 500 metros à frente e depois um trecho de mais de 1500 metros contra a maré. Manter a direção era a parte mais difícil dessa etapa.
Manter a direção é sempre algo importante para você não nadar muito mais que o previsto e não desperdiçar energia, mais ainda nadando contra a maré. Não adianta tentar enfrentar a maré, nesse caso, melhor nadar um pouco fora da rota para pegar a maré de lado, ainda que nade um pouco mais, o esforço será menor. Assim fiz.
Havia uma igrejinha ao lado da praia do Marina e essa construção foi minha guia nesse momento mais difícil da natação. Era como se Deus pegasse a minha mãe e guiasse na vida para não desviar.
Mais uma vez o esporte imita a vida. Sabemos o que temos que fazer, sabemos como fazer, mas sempre que precisamos ir mais longe, há uma fé que nos guia.
A primeira etapa fora cumprida e eu me sentia bem.
Sabia que começava ali o maior desafio dessa prova. O ciclismo. 180 km com muito vento. E um problema adicional que já me incomoda há algum tempo, um tal Neuroma de Morton, uma lesão no nervo entre o terceiro e o quarto dedo do pé, provavelmente desenvolvida pela pressão no uso da sapatilha, e que causa uma dormência e incomoda demais. Eu achava que sabia. Seria muito pior do que eu imaginava.
O primeiro desafio foi o calor escaldante no início. Na parte mais dura, muito vento e um longo percurso de mais de 100k num sobe e desce sem nenhuma parte plana. Mesmo na ida a favor do vento, tudo muito difícil, vento lateral e muitas subidas. A volta era desesperadora. Vento contra que obrigada a pedalar mesmo nas descidas e um esforço tremendo a cada subida. E eram muitas.
Guardo uma imagem que talvez explique melhor as minhas palavras. As folhas das muitas palmeiras que davam a impressão de que a qualquer momento seriam arrancadas pelo vento já seriam suficientes para assustar quem precisava pedalar 180km naquelas condições, mas quando vi alguns urubus tentarem levantar voo e serem jogados de volta pelo vento, percebi o quanto aquilo seria desafiador para o meu corpo e a minha mente.
O Neuroma incomodou depois dos 100Km ao ponto de ter que durante um tempo descalçar a sapatilha e pedalar com os pés em cima dela.
Foram longas quase 7 horas pedalando. Tempo suficiente para me permitir refletir sobre o porquê disso. E sempre respondo essa pergunta começando da mesma forma: porque sim! Pela minha vida, pelo desejo de superar meus limites, pela minha família, para orgulhar e dar bons exemplos aos meus filhos, pelos meus sonhos. Para aprender a ser resiliente nos momentos de dificuldades da vida, para ter sempre capacidade de seguir em frente mesmo quando pareço no meu limite físico ou psicológico, para aprender a planejar. Enfim, para definitivamente retirar do dicionário o verbo DESISTIR e aprender que, em qualquer circunstância, mesmo nas mais duras, sempre devo PERSISTIR.
Nunca tinha levado meu corpo e minha mente a tamanho extremo. Mas, mesmo estourando o tempo planejado, a etapa mais dura estava cumprida. Poderia ser um alívio, mas ainda faltavam 42 km de corrida.
Cruzar a portal, descer da bicicleta depois de quase 7 horas na posição nada confortável do pedal, sentar para calçar o tênis, tudo isso rezando para não ter câimbras. Deu certo.
Sai pra correr. Claro que é sofrido, mas ali já sabia que suportaria cruzar a linha de chegada e isso renova as forças e fortalece a mente.
Muitas cenas ficam guardadas em uma prova tão longa. A bela paisagem, as pessoas torcendo, outras pelas ruas, umas espantadas outras indiferentes, os amigos que cruzam na corrida quando podemos vê-los e cumprimenta-los, os atletas de todos os níveis.
Prefiro a lembrança dos sentimentos. Corri 42km com um coração cheio de paz e de coragem, cheio de força e de esperança, cheio de sonhos e de amor ao próximo. Sempre lembro meu pai pensando naquele homem que se orgulharia de mim. Sempre penso na minha esposa e nos meus filhos e esse pensamento me tira o direito de voltar pra casa sem a medalha, só recebida por quem cruza a linha de chegada.
É um sentimento muito parecido com aquele do pai de família que sai de casa para trabalhar, faz o melhor de si, supera seus limites, sente cansaço, as vezes até sente dor, mas não se dá o direito de voltar pra casa sem cumprir a missão de oferecer o digno sustento da família.
No Iron Man Fortaleza, os 42km da maratona são 3 voltas de 14km em um percurso do Marina ao Iate Clube, passando por toda a extensão da Avenida Beira Mar.
Completei as 2 primeiras voltas. Faltava pouco. Se é que podemos chamar de pouco 14km de corrida depois de ter nadado 3.8km, pedalado 180km e já corrido 28km.
Já havia percebido que no início do percurso da corrida, tão logo saia do Hotel Marina, passávamos pela mesma igrejinha que fora minha guia na natação, mas a passagem na última volta da corrida foi inspiradora.
Quando passei era exatamente a hora da missa e cantavam uma música do Padre Zezinho. Uma lição para um homem temente a Deus e que buscava aprendizado.
A Barca
Tu te abeiraste na praia
Não buscate nem sábios, nem ricos
Somente queres que eu te siga….
Senhor, Tu me olhaste nos olhos
A sorrir, pronunciaste meu nome
Lá na praia, eu deixei o meu barco
Junto a Ti, buscarei outro mar
Tu sabes bem que em meu barco
Eu não tenho nem ouro nem espadas
Somente redes e o meu trabalho…
Tu minhas mãos solicitas
Meu cansaço, que a outros descansem
Amor que almeja seguir amando.
Uma corrida é assim como uma vida honrada. É um navegar sem ouro e nem espadas. É uma navegar somente com redes e com trabalho. A música me deu força e paz de espírito, justamente quando o corpo já chegava ao limite.
Abria a terceira e última volta de 14km já com as pernas bastante doloridas, mas certo que concluiria o desafio num tempo por volta de 15 horas, não tinha certeza porque na transição apertei um botão errado e desprogramei o relógio. Podia tentar apertar um pouco para terminar abaixo de 15 horas. Foi o que fiz.
Os banhos de agua gelada, os goles de refrigerante e as capsulas de sal aliviavam um pouco e permitiam apertar um pouco o ritmo.
Próximo ao final da avenida Beira Mar, faltando por volta de 6km da última volta, portanto corridos 34km, o susto. Uma tontura repentina, o medo de desmaiar e ver cair por terra todo esforço de treinos e da própria prova, de transformar a euforia de completar o meu primeiro Iron Man em frustração.
Era hora de sabedoria. De saber dar um paço atrás, de caminhar bem lentamente, de parar um pouco no posto de hidratação, de reprogramar o final da prova. Passei a correr 500m e andar 300m.
Recuperei. Último quilometro. Um banho de água gelada. Mesmo no limite, apertei um pouco o ritmo para chegar com menos de 15 horas. Uma sensação boa de força física e metal, de capacidade de superar meus limites.
Já podia ver o pórtico de chegada. Quando larguei achei que ao final me sentiria invencível, um homem capaz de enfrentar qualquer desafio que a vida impõe. Na verdade, me senti frágil, falível. Aprendi que é preciso humildade e sacrifício para os desafios do Iron e da vida. Uma prova como essa não lhe faz arrogante, uma prova como essa nos faz humildes.
A linha de chegada. Peguei minha bandeira do Instituto ALGUEM e dei o significado ainda mais especial aquele momento. Corríamos também por um alerta em defesa das crianças com câncer que merecem tratamento digno e a chance de lutarem pela vida, ou mesmo de terem uma morte menos dolorosa.
Após 14 horas e 8 minutos (tempo bem abaixo do que imaginava durante a corrida) cruzei a linha de chegada com o coração leve e alma tranquila. Pude ouvir o locutor narrar: Marcelo você é um Iron Man!
Após passar pelo pórtico, uma jovem do staff da prova chega em mim e pergunta: Massagem ou soro? Logo respondi: Cerveja!
Afinal, eu era um Iron Man!