As pessoas, em especial as públicas, têm medo das suas fraquezas e pavor de expô-las. Eu não tenho! Não me sinto diminuído quando divido com meus leitores as minhas angústias, os meus medos e as minhas derrotas. Faço isso como uma forma de realimentar meu espírito e renovar minhas forças para enfrentar novos desafios.
Fiz a minha primeira maratona (42Km) em julho de 2013 com o tempo de 4 horas e 14 minutos, 16 minutos abaixo do planejado. De lá em diante, vinha numa evolução constante, melhorando muito meus tempos nas provas de triathlon e em algumas meias-maratonas (21km).
Seguro, depois de correr uma meia-maratona próximo de 1 hora e 50 minutos com o meu tio Gilberto – um corredor mais experiente e mais preparado que eu – decidi enfrentar outra maratona em janeiro e combinamos que faríamos a Gran Canaria Maratón em Las Palmas nas Ilhas Canarias (uma ilha que fica no Atlântico bem próximo do sul do Marrocos e do norte do Saara Ocidental, mas que pertence à Espanha), no dia 26.01.2014.
Planejei uma viajem de final de ano com a família (esposa Juliana, filho Gabriel de 16 anos e filha Marcelinha de apenas 9 meses) e inclui na programação a ida a Valência na Espanha para lá encontrarmos com o meu tio e irmos rumo as Canarias.
Sem muita disciplina (aqui a indisciplina não é por falta de treino, mas por excesso), sem planejamento e com o VOLUNTARISMO que me é peculiar fui me preparando com o objetivo de fazer a minha primeira maratona em menos de 4h. Sentia-me forte e capaz, apesar de algumas dores do joelho que já começavam a me incomodar.
Algum tempo antes da viagem recebi a notícia que meu tio Gilberto não faria mais a prova. Ele sofrera um atropelamento grave quando treinava em Valência (onde mora) e estava à espera de uma cirurgia. Resolvi manter a programação da corrida.
Viajamos. Manaus-São Paulo. São Paulo-Madri (10 horas de vôo). Madri-Valência (2:30 de trem). Valência-Canarias (2:30 de vôo).
Nos 4 dias em Madri fiz meus treinos de 10km em bom ritmo, todos num frio intenso e um deles numa temperatura de 2 graus negativos. Em Valência, mais um treino de 10km sob muito frio.
Eu, Juliana, Gabriel e Marcelinha partimos para Las Palmas de Canaria no dia 22 – 4 dias antes da maratona. Fiz uma corrida leve de 7km no dia 23 e planejei descansar nos dias 24 e 25. Não consegui. Quase apanho ao sugerir isso para a Juliana e o Gabriel, já que a Marcelinha ainda não tem poder de reação. Foram dias intensos de passeios com a família, incluído na véspera dirigir 200km um carro com câmbio mecânico subindo a montanha.
As dormidas sempre difíceis por conta do fuso horário. 5 horas de diferença em Madri e Valência e 4 horas de diferenças nas Ilhas Canarias. Na véspera da prova não foi diferente, dormi mal e acordei muito antes do horário.
Chegou a hora. Peguei o ônibus do hotel para o local da largada. A experiência de sair só – a largada e a chegada eram um pouco longe do hotel e nós viajaríamos de volta à Valência pouco depois da corrida e por isso minha família não iria comigo para a corrida – e saber que lá chegando também não encontraria ninguém conhecido era desagradável. A corrida assim perdera aquele sentimento de confraternização com amigos e de cumplicidade no desafio.
No ônibus uma conversa rápida com 2 senhores espanhóis que fariam sua primeira maratona e ficaram surpresos em encontrar um brasileiro que saira do Amazonas para correr uma maratona nas Ilhas Canarias – eu também ficaria.
Cheguei. Aqueci um pouco. Foi dada a largada às 9h em ponto (5h da manhã em Manaus), sob uma temperatura de 17 graus, com céu sem nuvens e muito sol.
Primeiro quilometro com pace abaixo de 5min/km. Até o quinto quilometro sempre abaixo de 5. Por volta do km 7 passei em frente ao Hotel Verol e pude ver pela janela de vidro minha família tomando café, mas eles não me viram. Decidi adequar o ritmo para 5min/km, planejando que completaria os primeiros 21km em 1:45 (meu melhor tempo na meia-maratona) e teria uma folga de 30min para a segunda volta.
Focado, não prestava muita atenção no percurso. Mas lembro da lindíssima imagem da praia, da catedral de Santa Ana e da alegria nas palavras de entusiasmo das milhares de pessoas que assistiam a prova e repetiam por toda parte: “animo” “animo” “animo”. Estava bem, veloz e concentrado no meu objetivo.
Fechei a primeira volta de 21km (a prova eram 2 voltas no mesmo percurso) em exatos 1:45 (meu melhor tempo de meia-maratona). Tudo bem nos primeiros quilômetros da segunda volta. Baixei o ritmo para 6min/km.
Por volta de 25km os primeiros sinais de cãibras no músculo posterior da coxa. Lembrei do Iron Man e se lá fui capaz de fazer os 21km com cãibras em 2:14, certamente, alcançaria meu objetivo de concluir a maratona em menos de 4h.
No entanto, aos 28km passei a sentir dores no joelho esquerdo. Uma dor muito incomoda. Ainda tentei ignorar a dor e apegar-me às palavras de incentivo das pessoas que assistiam a passagem da maratona e à bela paisagem da praia de Las Palmas num dia de sol e céu azul que decorava esse trecho da prova. Mas não resisti.
No km 31 as dores no joelho já eram insuportáveis mesmo no trote. Restavam-me dois caminhos: parar ou seguir andando. Para mim, parar e não concluir a prova seria motivo de decepção intima e perante todos os que torciam por mim, minha família que estava comigo na Ilha e meus amigos que torciam de Manaus. Seguir caminhando traria uma decepção íntima, mas ainda assim eu concluiria em um tempo longe do planejado, mas bem razoável. O certo seria parar. Mas decidi seguir.
Foi um momento muito duro. Sentimento de frustração. Sentia vontade de chorar. Mas era preciso reunir forças para seguir em frente restavam 11km que eu faria caminhando, já que nas tentativas de trotar ao menos as dores eram insuportáveis.
Faltavam menos de 5km pra o fim da prova. Havia uma grande turma em uma das avenidas fazendo festa e estimulando os corredores que passavam já bastante desgastados. Eu caminhava. Quando passei por eles, tentei correr, mas não dei 10 passos e isso quase me causa a desistência final. Era definitivo. Não dava pra correr.
Faltando alguns poucos quilômetros, um dos senhores que conversei no ônibus e por quem cruzei bem à frente na primeira volta da prova, passa por mim e logo depois o joelho já não resistia mais nem a caminhada, parei chorando de dor e alguém do apoio da prova disse que um pouco à frente havia uma barraca de primeiros socorros e que faltava muito pouco pra acabar.
Cheguei mancando na barraca onde passaram um spray no joelho. Tentei correr e quase caio. Segui caminhando. Já podia ver a linha de chegada, muitas palmas e palavras de estímulo. Corri uns 50 metros (o suficiente para aparecer correndo no vídeo de chegada) passando em meio a uma arquibancada e concluindo os 42,195km em 4:26:40s.
Não havia qualquer emoção. Não havia um só amigo para dividir aquele momento. Só muita dor e a preocupação rapidamente pegar as minhas coisas no guarda volumes, ir ao hotel pegar Juliana, Gabriel e Marcela e ir para o aeroporto.
Esse é o relato da prova. Agora vamos às lições dessa experiência.
Até aqui, nas corridas e no triathlon havia alcançado todos os objetivos planejados. Fiz isso sempre sem dar ouvidos às orientações de descansar um pouco mais e planejar melhor os treinamentos. Aos que insistiam no risco de lesão, respondia que não sentia dores (e não sentia mesmo até alguns dias antes da maratona), que planilha era besteira e que tinha os resultados que queria treinando da minha forma. Eu estava errado.
Podia dizer que perdi nos dias anteriores da prova. Que perdi pra falta de descanso, para falta de alimentação e hidratação adequada, pro mau planejamento da prova. Mas não. Eu perdi muito antes. Perdi pra minha teimosia e por achar que um corpo, em especial um corpo de 40 anos, pode ser treinado sem descanso e sem orientação adequada.
Mas descobri também que não dá pra fazer uma maratona no meio de uma viagem de férias com a família. Eu não errei por levar a família pra maratona. Errei por inventar uma maratona num momento de lazer e convivência com as pessoas que mais amo. Eles não mereciam que eu parasse pra descansar ou que evitasse uma boa comida nos poucos dias do ano que eles me teriam em tempo integral e sem as preocupações do trabalho e da rotina.
Aprendi ainda que não tem a menor graça e que não tem cabimento, para um atleta amador e que faz as provas pro prazer e alegria, correr sozinho, fazer uma prova sem amigos, não ter a quem desejar boa sorte na largada e nem a quem abraçar após a linha de chegada. Correr é um ato de amizade e confraternização. Sem esses componentes, não tem a menor graça.
O resultado ficou longe do que eu esperava. Fiquei triste e frustrado. Mas, na corrida, como na vida, as derrotas nos ensinam mais que as vitórias. Resgatam nossa humildade e nos cobram uma reflexão sobre o que foi feito de errado para corrigir e seguir a caminhada. Sigo obstinado em concluir uma maratona em menos de 4 horas.